Após o caso de criança agredida em uma das escolas da rede municipal, reportagem investigativa revela falhas graves na contratação de estagiários
A agressão de uma criança de cinco anos por uma estagiária de 38 em Criciúma jogou luz sobre um problema muito maior: a contratação de estagiários sem critérios claros nas escolas municipais. O incidente, ocorrido no bairro Santa Luzia, ganhou as redes sociais após ser registrado em vídeo e provocou indignação generalizada.
Mais do que um caso isolado, ele expõe um sistema de contratações desorganizado: pessoas sem a qualificação necessária estão sendo colocadas em posições de grande responsabilidade, incluindo o cuidado de crianças com necessidades especiais.
O Ministério Público já acompanha a situação
Não é de hoje que o Ministério Público vem acompanhando as falhas no processo de contratação de estagiários. Segundo o promotor de Justiça, Samuel Dal Farra Naspollini, o órgão já monitora o uso desses estagiários nas escolas municipais, especialmente nas funções de apoio a crianças com deficiência.
Até o momento, a prefeitura de Criciúma convocou apenas 30 auxiliares de ensino aprovados no concurso 001/2024, enquanto ainda existem 20 vagas em aberto. Esses profissionais são chamados conforme a demanda, especialmente quando há determinação judicial ou solicitação nominal do Ministério Público. Ou seja, é preciso uma intervenção enérgica.
Isso levanta um questionamento importante: como é definida essa “demanda” frente ao uso constante de estagiários desqualificados? O número de auxiliares capacitados é insuficiente, e os estagiários, muitas vezes sem preparo adequado, são forçados a preencher essas lacunas. Com 833 estagiários atualmente em toda a rede municipal, a maioria é composta por jovens do ensino médio, sem formação específica para lidar com situações delicadas, como o cuidado de crianças com necessidades especiais.
Investigação revela falta de critérios na contratação
Durante nossa investigação, entramos em contato com o Centro de Integração Empresa-Escola de Santa Catarina (CIEE/SC) para entender melhor os critérios de contratação de estagiários. De acordo com o CIEE/SC, para atuar nas escolas, seria necessário estar cursando pedagogia.
No entanto, ao conversarmos com a Secretaria de Educação de Criciúma, a realidade nas escolas municipais se mostrou bem diferente. A única exigência para a contratação de estagiários é estar matriculado no ensino médio ou em qualquer curso superior — sem a necessidade de cursar pedagogia.
A situação se agrava quando observamos a falta de verificação de antecedentes criminais. A repórter do portal SCTodoDia Laura Silva, se passando por uma candidata à vaga, questionou diretamente se haveria necessidade de apresentar esse documento. A resposta foi um enfático “não”. Isso significa que tanto uma adolescente de 16 anos quanto uma mulher de 38, como a estagiária envolvida na agressão, podem ser contratadas para trabalhar com crianças sem qualquer avaliação prévia de seu histórico.
O caso da estagiária de 38 anos
O incidente que gerou toda essa discussão ocorreu quando uma estagiária de 38 anos foi filmada sufocando uma criança com um cobertor, dizendo que ela podia “chorar o quanto quisesse”. O vídeo foi gravado por uma colega de trabalho, que também foi demitida após o ocorrido. A agressora foi afastada imediatamente, mas a resposta rápida da prefeitura não aborda o problema sistêmico.
Após a repercussão do caso, a prefeitura emitiu uma nota afirmando que o incidente foi uma “exceção” e que providências foram tomadas para garantir o suporte à família da criança, com psicólogos e assistentes sociais à disposição. Ao aprofundarmos a questão, percebemos que esse não é um caso isolado, mas o sintoma de um sistema falho e pouco criterioso na seleção de estagiários que lidam diretamente com crianças.
Medidas paliativas ou soluções definitivas?
Embora a prefeitura tenha afirmado que medidas rápidas foram tomadas, incluindo a demissão das envolvidas, a situação nas escolas municipais permanece crítica. A dependência de estagiários sem preparo adequado para suprir a falta de profissionais capacitados é um problema que não se resolve com ações paliativas.
Atualmente, existem 833 estagiários atuando nas escolas municipais de Criciúma, muitos deles responsáveis por crianças com deficiência, sem a formação necessária para desempenhar essa função com segurança e eficácia.
O concurso para auxiliares de ensino, que deveria suprir essa carência, resultou na contratação de apenas 30 profissionais até agora, e o processo de convocação tem sido lento e insuficiente para a demanda real.
Além disso, embora a prefeitura tenha contratado 105 professores em 2024, isso não resolve a questão dos estagiários que, na prática, ocupam funções para as quais não estão preparados. O risco de novos incidentes semelhantes ao ocorrido continua alto, e a resposta da administração pública até o momento tem sido apenas paliativa.
Projeto vetado pela prefeitura agrava a situação
A questão da falta de profissionais capacitados nas escolas de Criciúma já vinha sendo discutida antes desse incidente. Em 2024, o vereador Juarez de Jesus (PL) apresentou o Projeto de Lei 22/2024, que obrigaria a prefeitura a garantir que alunos com laudos médicos tivessem prioridade de atendimento especializado.
No entanto, o prefeito Clésio Salvaro (PSD) vetou o projeto, alegando inconstitucionalidade e justificando que o diagnóstico dos alunos poderia ser resolvido com planos individuais de atendimento nas próprias escolas. O vereador ainda assim perguntou do interesse em cumprir com o PL. Segue aguardando resposta.
A justificativa ignora a realidade enfrentada diariamente pelos profissionais da educação e pelas famílias de crianças com deficiência, que dependem de profissionais qualificados e preparados para lidar com suas necessidades. O uso de estagiários sem preparo é uma solução temporária que só agrava o problema, mascarando a falta de investimento em profissionais especializados.
A agressão à criança de cinco anos é apenas o estopim de um problema muito maior: a contratação sem critérios de estagiários para atuar em funções de extrema responsabilidade. A falta de verificação de antecedentes criminais e de formação adequada, somada à dependência de estagiários para preencher as lacunas deixadas pela falta de auxiliares de ensino, cria um ambiente vulnerável, onde o bem-estar das crianças está constantemente em risco.
O Ministério Público já acompanha o caso, e a prefeitura precisa rever urgentemente as políticas de contratação e gestão de estagiários. Sem uma solução definitiva para a carência de profissionais qualificados, casos como o ocorrido podem se repetir, colocando em risco a segurança e o desenvolvimento de milhares de crianças nas escolas municipais de Criciúma.
Colaboração: SCTodoDia/Linha Verdade